As Barbas do Romualdo
(Conto que não é conto)
Arthur Azevedo
O Romualdo tinha nascido, talvez, para os mais altos destinos; mas como os pais se
esqueceram de mandar educá-lo, e ele mal sabia ler e escrever, o mais que arranjou foi
ser soldado do exército, e, depois de obtida a sua baixa, contínuo de secretaria.
Releva dizer que o Romualdo só deixou crescer as barbas depois de contínuo; se as usasse
quando era soldado e guerreava no Paraguai, chegaria a capitão pelo menos.
Mas que contínuo! Alto, gordo, ereto, com aquelas opulentas suíças brancas a
emoldurar-lhe a cara, sem bigodes, mais parecia um magistrado, cuja figura estava ao
pintar para presidir a um júri sensacional, e essa ilusão só se desfazia quando ele
falava, porque o Romualdo, benza-o Deus! por mais que compusesse a sua fisionomia austera
e veneranda, tinha o estilo e a prosápia do "povo da lira". Calado era um juiz;
falando, um capadócio.
Os praticantes amanuenses e mais funcionários do chefe de secção para baixo
envergonhavam-se de o chamar a toque de campainha, que naquele tempo as campainhas
burocráticas ainda não eram elétricas. As de hoje são menos humilhantes, não sei se
devido à. eletricidade, se à ausência do badalo. O badalo foi sempre impertinente e
autoritário.
Era, em verdade, pelo menos desagradável para um funcionário rapazola ver diante da sua
mesa de trabalho aquele homem solene, a dizer-lhe, por exemplo: Leve este ofício
à portaria.
O Romualdo não ignorava o respeito que infundia ao pessoal da repartição, e abusava da
respeitabilidade das suas barbas. Muitas vezes estava sentado no saguão da secretaria, de
óculos, entretido a ler o seu jornal, quando o retintim de uma campainha tímida lhe
entrava pelos ouvidos, chamando-o à realidade da sua situação de subalterno.
Era o mesmo que se não tivesse ouvido. Quando o som argentino retinia pela terceira vez,
ele murmurava sem interromper a leitura e não tão baixo que o não ouvissem: Pois
sim!...toca p'r'aí!...súcia de vadios!...não têm mais que fazer senão dar ao
badalo!...
Tlin! tlin! tlin!...
Toca, toca, meu menino!...estou bem aqui!...
Afinal, abria-se um reposteiro, para deixar passar a cabeça do funcionário
incipiente...e impaciente:
Então, seu Romualdo? Há uma hora que estou a tocar!
O contínuo erguia a cabeça, tirava os óculos, guardava-os na algibeira, dobrava com
lentidão o jornal, erguia-se majestosamente, e perguntava do alto das suas barbas:
Que temos?
Nem uma palavra de desculpa, nem a sombra de uma explicação!
O amanuense não se atrevia a protestar: intimidava-o aquele aspecto de pessoa grada ou
cidadão conspícuo.
Em casa, depois que deixara crescer as suíças, o Romualdo poderia dizer-se oráculo. A
mulher e os filhos admiravam-no; os parentes diziam todos à uma que era clamoroso estar
ali um simples contínuo, quando tinha capacidade para dirigir uma repartição de
primeira ordem.
Nos penates ele falava pelas tripas do Judas, discorrendo sobre todos os assuntos sociais
ou políticos, e dando sobre cada um a sua opinião individual. Nessas ocasiões só dizia
parvoices, mas a família ouvia-o embevecida e assombrada diante de tanto saber. Era um
efeito das barbas.
Nas ruas, o Romualdo era cumprimentado por muita gente que o não conhecia, porque a sua
figura solicitava a consideração e o respeito dos estranhos. Alguns, depois de passar
por ele, olhavam para traz e perguntavam a si mesmos: Quem será aquele figurão?
Quando o deputado foi nomeado ministro e pela primeira vez entrou na secretaria,
impressionaram-no aquelas barbas, e indagou a quem pertenciam. Quando lhe responderam que
o Romualdo era um simples contínuo, imediatamente ordenou que ele fosse servir no
gabinete. Achou-o decorativo.
Ao lado do ministro, o Romualdo, sem que para isso concorresse outra coisa mais que não
fosse a exibição das suas barbas, captou a confiança e até certo ponto, a
familiaridade de s. ex., e isso o tornou ainda mais solene e majestático.
Quando ficava trabalhando em casa, sem aparecer na repartição, o ministro queria o
contínuo perto de si, pronto para receber, introduzir ou mandar embora os visitantes, ou
levar à secretaria, rapidamente, qualquer ordem de s. ex. Naquele tempo ainda não havia
telefone.
No anunciar visitas e dar recados, o nosso homem, que era positivamente um mau contínuo,
revelou qualidades excepcionais, e de uma vez até pôs as suas gloriosas suíças ao
serviço da boa harmonia administrativa.
O caso conto como o caso foi.
O ministro andava, não sei porque, às turras com o diretor da Estrada de Ferro, e já o
teria demitido, ou por outra apresentado em conselho o respectivo decreto, se não
soubesse que o homem era protegido pelo imperador, e ele, ministro, não fosse tão
agarrado à pasta.
Um dia o alto funcionário precisou falar ao ministro sobre matéria urgente de serviço,
e, não o achando na secretaria, foi ter à sua casa.
Encontrou na ante-sala as barbas do Romualdo, que cochilava sentado numa cadeira.
O ministro está?
Está, sim, senhor.
Vá dizer a esse idiota que o diretor da Estrada de Ferro precisa falar-lhe com
urgência.
O Romualdo, que já se havia erguido, inclinou-se, penetrou no gabinete do ministro, e
disse-lhe:
Está aí o sr. diretor da Estrada de Ferro que pede a v. ex. o obséquio de lhe
conceder alguns minutos de atenção para assunto urgente.
O ministro, sem levantar os olhos do seu trabalho, respondeu:
Diga a essa besta que não estou para o aturar, e que não me amole!
O Romualdo inclinou-se, saiu, e veio dizer ao funcionário:
O sr. conselheiro manda pedir a v. ex. o obséquio de procurá-lo noutra ocasião,
porque neste momento está muito ocupado, e sente não poder prestar a v. ex. toda a
atenção que v. ex. merece.
O diretor da Estrada de Ferro saiu arrebatadamente, gritando:
Pois digalhe que vá para o diabo que o carregue!
O Romualdo voltou ao gabinete, e assim falou :
O sr. diretor da Estrada de Ferro manda agradecer a bondade com que v. ex. o
tratou, e diz que mais tarde procurará v. ex. na secretaria.
Com aquelas suíças, quem poderia supor que o Romualdo mentisse?
Arthur Nabantino Gonçalves de Azevedo, nascido em São Luís do
Maranhão a 07 de julho de 1855, é uma das grandes figuras do humorismo brasileiro. Foi
jornalista, comediógrafo, contista e poeta. Em toda sua obra campeia um fino e gracioso
humorismo. Autor dos "Contos Possíveis", "Contos Efêmeros",
"Contos fora de moda", "Contos em verso", "Contos
Cariocas" e "Vida alheia", espalhou também sua verve em dezenas
de revistas teatrais e de esfuziantes comédias, entre as quais sobressaem "O
Dote", "A Almanjarra", "A Véspera de Reis",
"O Oráculo", "Vida e Morte", "Entre a Missa e
o Almoço", "Entre o Vermute e a Sopa", "Retrato a Óleo"
e "O amor por Anexins". Trabalhou nos principais jornais da época, no
Rio de Janeiro, tendo fundado e dirigido "A Gazetinha", "Vida
Moderna" e "O Álbum". Membro fundador da Academia Brasileira de
Letras, em que ocupou a cadeira n. 29, para a qual tomou Martins Penna como patrono,
faleceu no Rio de Janeiro a 22 de outubro de 1908. O texto acima foi extraído do livro
"Antologia de Humorismo e Sátira", Ed. Civilização Brasileira
Rio de Janeiro, 1957, pág. 134. Uma seleção de textos e poesias feita por R. Magalhães
Jr.
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