Meu pai
Antônio Caetano
Andar por essas ruas antigas do Centro da cidade sempre me lembra meu pai. Ele sabia de
cor o nome e a ordem de todas as ruas desde o Cosme Velho até lá pelos lados da
Rodoviária. Dos outros bairros também conhecia tudo ou quase tudo o homem era um
Guia Rex ambulante.
Isso décadas depois de ter largado o trabalho de vendedor da cervejaria de onde era
sócio e que lhe exigia cobrir extensas "praças" a cada dia da semana, de bar
em bar, conversando e anotando os pedidos, pois além de fabricar cerveja preta, eles
também distribuíam águas e vinhos.
Sua memória era mesmo espantosa. Até o fim da vida, aos 82 anos, era capaz de lembrar de
fatos de sua infância e juventude com tamanha riqueza de detalhes que era como se nele
memória e imaginação trabalhassem estreitamente juntas, feito nos sonhos. Não era,
entretanto, um nostálgico melancólico - certamente porque tão grande era seu poder de
lembrar que as coisas jamais lhe pareciam distantes.
Faz sete anos que meu pai morreu, mas há memórias tão vivas dele em mim que às vezes
é como se apenas estivéssemos morando muito longe um do outro e as condições de
comunicação fossem precárias. Mais do que tudo, sinto falta de sua voz. Nunca fomos
pessoas de gravar ou fotografar os eventos domésticos e familiares, por isso, há poucos
registros fotográficos e nenhum sonoro de nossa vida juntos. Não me arrependo: prefiro
cultivar em mim, sua lembrança do que confiá-la a outros meios. Isso exige que
periodicamente eu o recorde. Um dos modos, como disse, é andar pelas ruas do Centro.
Amar essas ruas estreitas, com seus sobrados e calçamento de pedra, suas igrejas
trabalhadas em detalhes de cantaria é o modo viril e, ao mesmo tempo, doce que minha
memória encontra de reverenciá-lo, de fazê-lo quase vivo. Assim, aliás, era meu pai,
um homem doce e viril, que às vezes interrompia seus longos silêncios para cantar fados
e modinhas de sua terra que lhe viam subitamente à cabeça. Como todo imigrante, era um
trabalhador incansável. "Labrego" era o termo pejorativo que os brasileiros
atribuíam a esses homens rudes vindo do campo, mas a mim, a palavra sempre soou forte e
poderosa, as raízes agarradas à terra. Disse rude, porque era essa a impressão
preconceituosa que se tinha desses agricultores que vinham tentar a vida nas cidades do
outro lado do Atlântico. Mas o ensino primário que recebeu em sua aldeiazinha no começo
do século passado era de uma qualidade impensada nas escolas públicas de hoje.
Sua caligrafia, por exemplo, era perfeita, coisa de copista medieval. Sua capacidade de
fazer contas era algo inacreditável para as gerações acostumadas à máquina de
calcular. E lia, lia muito no pouco tempo que lhe sobrava. Aprendi a gostar de Nelson
Rodrigues com ele e, até hoje, me comove achar em algum livro antigo o xis que fazia com
a unha para assinalando o parágrafo onde interrompera a leitura ou um pedacinho de papel
marcando a página. Coisas de meu pai...
Hoje à noite, nos encontraremos secretamente, quando eu me juntar à multidão que nos
fins-de-semana lota as ruas da Lapa para curtir a mais variada exposição de ritmos
musicais da face da terra. Samba, pagode, rock, reggae, dança de salão, capoeira,
olodum, o diabo! Duvido que em qualquer outra cidade do mundo se possa encontrar tantos
ritmos reunidos em tão pouco espaço. Um ouvido atento e musical chega ao delírio em
alguns pontos muito específicos desse percurso: o sujeito pára e, se inclinar-se mais
para a esquerda, ouve um samba; se inclinar-se mais para a direita, ouve um reggae.
Loucura que faz da Lapa a capital cósmica da música onde negros, brancos, mulatos, gays,
travestis, putas, putos, góticos, punks, sambistas, roqueiros, fashions, mulambentos,
coroas e anitas enfim, toda a variada fauna humana se reúne num clima de total
liberdade e nenhuma violência. Que Deus mantenha longe os "reis da noite" da
Zona Sul, a polícia, a prefeitura, a ordem, o progresso e todo tipo de bacana babaca e
corrupto.
Hoje vou de novo lembrar do meu pai ao passear por essas ruas da Lapa que me são tão
caras: na Lavradio, onde fica a Tribuna e ficava a cervejaria dele; na Riachuelo, onde eu
nasci, no Hospital da Ordem do Carmo; nas vielas estreitas próximas aos Arcos: marcos
principais do secreto mapa dos meus afetos, meu mais nítido retrato, eu para além de mim
refeito em pedra. Hoje estarei lá, eu tão intensamente eu que serei todos e
ninguém. Eu, à flor da pele, atento, os sentidos refinados pela memória e imaginação
herdadas de meu pai.
Mas, chega, leitor, não quero cansá-lo com minha lembranças, fantasias e ilusões. Nos
encontraremos na Lapa, senão em corpo, ao menos em espírito. E "com isto já não
vos enfado mais", como dizia às vezes meu pai ao se despedir.
Antônio H. Caetano é
carioca, nascido em 1958. Foi repórter, editor e redator de publicidade, fez seus sambas
e cometeu poemas. Seu livro, "O Escafandrista e a Bailarina", edição do autor,
pode ser comprado em sua página. Atualmente é o editor-executivo do caderno
"Tribuna Bis", da "Tribuna da Imprensa", jornal para o qual colabora
com crônicas às segundas-feiras. É o "factótum" do site Café
Impresso. Texto enviado pelo autor ao
Releituras, a quem agradecemos.
Visite o sitio do escritor: http://www.cafeimpresso.com.br
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