Canção de Homens e Mulheres Lamentáveis
Antônio Maria
Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá.
Quem seria capaz de abrir o peito e
mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto?
Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e
dizer:
Estou me sentindo assim, assim, assim...
A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde
estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são
de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os
olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os
quefazeres do sexo.
Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem
importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De
pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não,
não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela).
Não há diferença.
E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para
apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você
revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia,
que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: "Preso o
alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do
Country".
Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que
tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria
desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e
sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca.
Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar
o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme.
Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela
primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o
porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:
Que é que houve? O senhor está mais velho?
Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as
desculpas. Mas o homem continuou:
O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu.
Tinha pensado que, sem os óculos...
Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo,
simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva
e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes.
Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é
muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.
(9/10/1964)
Antônio Maria teria completado 80 anos no dia 17/03/2001. A ele o nosso
abraço, esteja onde estiver.
Texto extraído do livro "Com Vocês Antônio Maria", Editora Paz e Terra
- São Paulo, 1994, pág. 127.
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