Despedida
Antônio Maria
Permite que eu deseje, agora, tomado e vencido pelas urgências que de mim exigem, um
canto de sono e preguiça onde ainda não se tenham inventado o telefone e o relógio.
Deixa que eu seja pessoal em mais uma crônica para, ao medo das tarefas que se me
impõem, querer, ardentemente, que não tirem do rol das pessoas úteis, que me esqueçam
e que me abandonem, que me larguem, enfim, onde seja lícito viver ignorado e
despercebido. Sinto-me vazio de poesia, esgotado de um resto de doçura que tanto prezava
e, coagido pelos que revendem minhas idéias, dói-me o tempo e o esforço gastos, os
ardis e os truques que emprego para arrumar palavras e construir frases de efeito. Lamento
enganar a todas. Permite que eu deseje, agora, um silêncio que me contagie de tristeza,
uma calma boa e definida para, num momento espontâneo e sossegado, escrever as grandes
definições, as palavras que me envaideçam, os versos e as cantigas que me elevem,
querida, à glória e à resolução do teu desmesurado amor. Através dessa janela vejo
coisas que, antigamente, eram poderosas e fecundas. O céu repete o azul de tantas tardes
acontecidas em maio, as últimas quaresmeiras do verão agonizam na saia do morro, os
homens martelam a pedreira... e eu não sinto vontade de rir ou de chorar. Na rua,
arrastando uma corrente eterna e incompreensível, passa mais um caminhão da Standard
Oil... e eu não sinto nenhum vexame político, nenhuma revolta social. Por isso e pela
descrença que em meu espírito se acentua, permite que eu deseje ser só ou teu
somente num lugar do mundo onde os gritos não tenham eco, onde a inveja não
ameace, onde as coisas do amor aconteçam sem testemunhas. Livrem-me da pressa, das datas,
dos salários e das dívidas e a todos serei agradecido, num verso submisso. Livrem-me de
mim, de uma certa insaciabilidade que apavora e de todos serei escravo numa humilde
canção. Permite que eu só queira, agora, esse canto de sono e preguiça, onde não
necessite dos atletas, onde o céu possa ser céu sem urubus e aviões, onde as árvores
sejam desnecessárias, porque os pássaros se sintam bem em cantar e dormir em nossos
ombros.
31/05/1963
Texto extraído do livro "Com
Vocês, Antônio Maria", Editora Paz e Terra - Rio de Janeiro, 1964, pág. 225.
Tudo sobre Antônio Maria e
sua obra em "Biografias".
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