Soneira e Preguiça
Antônio Maria
Não sei, mas com esse tempo assim, essas nuvens pesadas,
meu peito opresso, daria um conto e seiscentos para ser Augusto Frederico Schmidt e não
precisar trabalhar. Falar nisso, onde anda Augusto, que nunca mais me telefonou?
Comunistizou-se, na certa. Sempre achei que Augusto daria um militante da Quinta Casa.
Com esse tempo assim, se pudesse; subiria a Petrópolis (uma Petrópolis, é claro, avant
les roses), pegaria um Simenon, protagonizado por Maigret, e não sairia da cama. Sinto
uma soneira, uma preguiça! Por que será que não tenho coragem de enriquecer? Quase
todos os meus colegas de imprensa enriqueceram, acordando cedo, indo à cidade e vendendo
suas palavrinhas, a um conto e quinhentos. O jornalismo, bem administrado, é tão bom
negócio quanto a especulação imobiliária e o jogo da bolsa. Querendo, a gente vende
bem aquilo que publica e, melhor ainda, aquilo que não publica.
Outro negócio que eu poderia fazer, sem grandes canseiras, era agiotagem. Ah, daria um
grande agiota! Às vezes, me olho no espelho e vejo o agiota. Eu tenho os olhos pequenos
do agiota magnífico. A matéria-prima da agiotagem, como sabeis, é o dinheiro... e
dinheiro, com as amizades que tenho, seria canja conseguir. Tomaria, nos bancos, a 1% e
emprestaria a 7%. Com o físico que Deus me deu (e quase tira), exigiria bons avalistas
do gabarito de Walter Moreira Salles para cima.
Deixa de besteira, Antônio. Vai trabalhar. Teu combustível é a preguiça. O
"autêntico real, o cerne da tua filosofia", como disse Novalis. Não fosses
tão preguiçoso, estarias ainda botando esterco, com as mãos, nos canteiros de cana da
usina Cachoeira Lisa. Escreve, Antônio. Escreve sobre o Nada, suas causas e
conseqüências. No Nada, por exemplo, há uma senhora nua, tocando cavaquinho. Um menino
montado num leão. Uma cobra de salto alto. Fazer poesia é mais fácil do que carregar um
piano do que tocá-lo, como os dedos de Leon Fleisher. Para que chegues à poesia,
basta que te aprisiones em ti mesmo e cuspas vigorosamente a face dos outros. O poeta tem
que ignorar o próximo e odiar a si mesmo. (Palavra de honra, jamais escrevi frases tão
estúpidas. Mas vão ficar, porque se retirá-las a crônica ficará menor.).
Passando do Nada ao Tudo. Isto é, voltando à realidade, telefonei para a rádio, a
televisão, e soube que estava em greve. Eu estou em greve, meus amigos. Meus
companheiros se batem por salários que não irão aumentar os meus e por um aumento de
programação ao vivo, que só aumentará, em muito, minhas obrigações. És um homem
lamentável, Antônio. Viva a greve!
23/11/1963
Texto extraído do livro "Com Vocês, Antônio Maria", Editora Paz e
Terra S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág. 215.
Tudo sobre Antônio Maria
e sua obra em "Biografias".
|