O sal da língua
Eugénio de Andrade
Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
Eugénio de Andrade (José Fontinhas) é um inspirado poeta português nascido em
Póvoa de Atalaia (Fundão), a 19 de Janeiro de 1923. Aos sete anos vai para Lisboa com
sua mãe, lá residindo até 1950, exceto nos anos de 1943 a 1946, quando viveu em
Coimbra. Em 1947 ingressa nos quadros dos Serviços Médico-Sociais, do Ministério da
Saúde, onde desempenhará durante 35 anos a mesma função - a de inspetor administrativo
- pois nunca se dispôs a fazer concursos de promoção. A sua transferência para a
cidade do Porto, por razões de serviço, deu-se em Dezembro de 1950, e quando houve
oportunidade para voltar a Lisboa, motivação já não havia pois sua mãe falecera.
Apesar do seu prestígio, face ao reconhecimento internacional de sua obra, o poeta vive
extremamente distanciado do que se chama vida social, literária ou mundana, avesso à
comunicação social, arredado de encontros, colóquios, congressos, etc., e as suas raras
aparições em público devem-se a "essa debilidade do coração, que é a
amizade", devendo encarar-se do mesmo modo o fato de ser membro da Academia
Mallarmé, de Paris. Cabe aqui referir que nunca concorreu aos prêmios que lhe foram
atribuídos, como nunca ninguém o viu usar usar qualquer insígnia das condecorações
com que foi agraciado. A poesia que escreve é honra que lhe parece suficiente.
A obra de Eugénio de Andrade, além de sua poesia, prosa, livros infantis e
traduções, é também engrandecida pelas antologias que organizou, em sua maioria sobre
a terra portuguesa,caracterizadas por uma total ausência de preconceitos e sectarismos
literários. Traduzido em cerca de vinte línguas, a poesia de Eugénio de
Andrade tem sido estudada e comentada por, entre outros, Vitorino Nemésio, Gaspar
Simões, Oscar Lopes, António José Saraiva, Eduardo Lourenço, Jorge de Sena, Eduardo
Prado Coelho, Arnaldo Saraiva, Joaquim Manuel Magalhães, Ángel Crespo, Carlo V.
Cattaneo, e suscitado o interesse de vários músicos, entre os quais Fernando
Lopes-Graça, Jorge Peixinho e Filipe Pires. O poeta foi o distinguido com a edição do
ano 2000 do Prêmio Vida Literária, instituído pela Associação Portuguesa de
Escritores (APE).
No dia 10 de julho de 2001, aos 78 anos, foi agraciado com o Prêmio Camões 2001,
considerado o mais importante prêmio da língua portuguesa, pelo conjunto de sua obra.
Passa a fazer companhia a outros grandes nomes de nossa literatura, já premiados, como
José Saramago e Sophia de Mello Breyner (portugueses), e Autran Dourado, João Cabral de
Melo Neto, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e Antônio Cândido (brasileiros).
O poeta faleceu na cidade do Porto, em Portugal, no dia 13 de junho de 2005.
Bibliografia:
Poesia:
- Adolescente (1942)
- Pureza (1945)
- Primeiros Poemas (1977), (que reunia as poesias dos dois livros anteriores)
- As Mãos e os Frutos (1948)
- Os Amantes Sem Dinheiro (1950)
- As Palavras Interditas (1951)
- Até Amanhã (1956)
- Coração do Dia (1958)
- Mar de Setembro (1961)
- Ostinato Rigore (1964)
- Obscuro Domínio (1972)
- Véspera da Água (1973)
- Escrita da Terra (1974)
- Limiar dos Pássaros (1976)
- Memória Doutro Rio (1978)
- Matéria Solar (1980)
- O Peso da Sombra (1982)
- Branco no Branco (1984)
- Vertentes do Olhar (1987)
- O Outro Nome da Terra (1988)
- Rente ao Dizer (1992)
- Ofício de Paciência (1994)
- O Sal da Língua (1995)
- Pequeno Formato (1997)
Prosa:
- Os Afluentes do Silêncio (1968)
- Rosto Precário (1979)
- À Sombra da memória (1993)
Literatura Infantil:
- História da Égua Branca (1977)
- Aquela Nuvem e Outras (1986).
Traduções:
- Safo
- García Lorca
-Cartas Portuguesas
Antologias:
- Daqui Houve Nome Portugal
- Memórias de Alegria
- Eros de Passagem
- A Cidade de Garrett
- Os Sulcos do Olhar
- Canção do Mais Alto Rio
- Poesia
- Terra de Minha Mãe
*Estas duas últimas com a colaboração do fotógrafo Dário Gonçalves.
O poema acima foi extraído do livro "O Sal da Língua", Fundação
Eugénio de Andrade - Porto (Portugal), 1995.
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