Insonolência
Evandro
Affonso Ferreira
Dorme, querido, dorme...
Seria mais fácil realizar os doze
trabalhos de Hércules.
Dorme, querido, dorme...
E pensar que tudo começou com
Pandora, que removeu o tampo do jarro espalhando males pelo mundo.
Dorme, querido, dorme...
Agora eu entendo porque Astréia,
vendo a degenerescência moral dos homens, foi para o céu, tornando-se a constelação da
Virgem.
Dorme, querido, dorme...
Todos os nossos projetos
resultaram em atividade esgotante e inútil. Não tenho mais força para recomeçar este
trabalho de Sísifo.
Dorme, querido, dorme...
Estou me sentindo como se tivesse
sido confinado no sombrio Érebo.
Dorme, querido, dorme...
Meu destino foi desviado pelo
ciumento Zéfiro. Sou um Teseu perdido no intrincado covil do Minotauro, sem a ajuda de
Ariadne.
Dorme, querido, dorme...
At?quando suportarei essa
condenação eterna? Afinal, não me chamo Tântalo, tampouco tra?a amizade e a
confiança de Olímpicos.
Dorme, querido, dorme...
Bíblis transformou-se em uma
fonte, Cicno em cisne, Ascálafo numa ave de mau agouro, Calisto em ursa, Dafne em
árvore, e eu, pelo andar da carruagem, vou me transformar numa ovelha negra.
Dorme, querido, dorme... o mundo
não vai se acabar s?porque voc?perdeu mais uma vez o emprego de professor de
Mitologia... Dorme, querido, dorme.
De repente, quando menos se espera, aparece alguém que se destaca e causa espanto. ?o
caso de Evandro Affonso Ferreira. Mineiro de Arax? nascido em 1945,
autodidata, foi redator publicitário por 20 anos. Montou um sebo com os 3.000 livros que
tinha em casa e, no dia 26 de outubro de 2000, aos 55 anos, lançou seu primeiro livro,
"Grogot?", Editora Topbooks - Rio de Janeiro - 2000, com 73 contos pequenos,
alguns com menos de 30 palavras, que trazem em si histórias inteiras, com fechos
trabalhadamente inesperados, surpreendentes. Depois, vieram "Ara?" (2002),
"Erefu?quot; (2004), "Zaratemp?" (2005) e "Catrâmbias!"
(2006). Seu estilo cativou o conhecido escritor Moacyr Scliar, que afirmou:
"Seus contos, muito curtos - raros são aqueles que ultrapassam meia página -
primam pelo refinamento, pela precisão da linguagem. ?possível definir duas
influências, ou pelo menos duas afinidades em seu trabalho: com Dalton Trevisan e com
Guimarães Rosa. Do primeiro ele tem o humor cruel, escatológico at?("Pobrezinha,
não agüenta mais o futum dos meus puns."). E, como Rosa, ele vai buscar na
pitoresca, mas simbólica linguagem popular do Brasil os termos e as expressões que,
misturadas ?frase de caráter mais erudito, dão um peculiar fascínio a seu texto.
Da página 40 dessa publicação,
extraímos o conto acima.
|