O navio das sombras
Erico
Verissimo
É noite escura e o cais está deserto. Ivo ergue a gola do sobretudo. Sente muito
frio, e o silêncio enorme e hostil enche-o de um vago medo. Vai viajar. Mas é
estranho... Tudo parece diferente do que ele sempre imaginara. O grande
transatlântico se desenha sem contornos certos contra o céu de fuligem. Não se
vê um só vulto humano no cais. Adivinha-se, entretanto, na treva, a presença
rígida e gelada dos guindastes.
Os minutos passam. Ivo olha. Sim, agora vê com mais clareza a silhueta do
grande barco. A grande Viagem! O seu sonho vai se realizar. Ficarão para trás
todas as suas angústias. É uma libertação. Devia estar alegre, sacudir os
braços, correr, gritar. Mas uma opressão estranha o paralisa. Que é isto? Onde
estão os outros passageiros? Onde se meteu a tripulação? É inquietante este silêncio
noturno. E pavorosa esta sombra glacial que envolve tudo. Ivo quer lançar ao ar uma
palavra. Pronuncia bem alto seu próprio nome. O som morre sem eco. O silêncio
persiste. Então ele começa a sentir um mal-estar que nem a si mesmo consegue
explicar.
Divisa aos poucos, vultos imóveis na amurada do paquete. Parecem guardas
petrificados dum barco fantasma. Por que não se movem? Por que não falam? A esta hora a
orquestra de bordo devia estar tocando uma marcha festiva. Carregadores gritando.
Passageiros, empregados de hotel, agentes da companhia de navegação, guardas
muita gente devia andar pelo cais num formigamento sonoro. No entanto reina o
mais espesso silêncio... Ivo dá dois passos e é tomado duma esquisita sensação de
leveza. Caminha sem o menor esforço. E como se não encontrasse nenhuma resistência no
ar, como se suas pernas fossem de algodão.
Mete a mão no bolso. Sim, ali está a sua passagem. Fica mais tranqüilo e encorajado.
Pode embarcar. Deve embarcar... Seria decepcionante perder o navio...
Dirige-se para a prancha. Hesita um instante antes de partir, porque a seus ouvidos soa,
muito fraca, muito abafada, uma voz amiga.
Ivo, Ivo querido, não me abandones! Inexplicável. De onde veio a voz? Volta a
cabeça para os lados, procurando. Só encontra a escuridão fria e inimiga, O navio
apita. Um som soturno, grave e prolongado, enche a grande noite. E uma queixa, quase um
choro e, apesar disso, tem um certo tom de ameaça. Nesse apito rouco Ivo sente o pavor do
oceano desconhecido na noite negra, a angústia dos navios perdidos a pedirem socorro, a
aflição dos náufragos, o horror das profundezas do mar. O apito uivante e áspero
parece feito dos gritos de todos os afogados, de todos os mares.
Ivo sente-se desfalecer de medo.
Meu Ivo, por que foi? Por que foi?
Outra vez a voz. Ivo estremece. De onde vem aquela voz? Na amurada, os
vultos continuam imóveis. Nenhum deles podia ter falado assim com aquela
ternura longínqua. Porque eles devem ter uma voz cavernosa de pedra.
Parado ao pé da prancha, Ivo olha para o alto. Vê um homem na extremidade superior da
escada. Está de pernas abertas, braços cruzados, olhando para baixo. Ivo não lhe pode
distinguir £s feições. Mas é curioso, ele sente a força de dois olhos magnéticos que
o fitam. E aquele olhar é um chamado, uma ordem.
Começa a subir. Lembra-se de um trecho de antologia da sua infância. André Chenier
subindo as escadas do cadafalso. Sim, ele sente que vai ser guilhotinado. Lá em cima
está o carrasco. Ou será apenas o capitão? Ivo sobe. Um, dois, três, quatro degraus
... O frio aumenta, Ivo começa a tiritar. Cinco, seis, sete. Sente uma fraqueza, uma
tontura. Subiu apenas sete degraus, mas agora o cais está tão longe de seus pés, que
ele tem a sensação de se encontrar no alto duma torre altíssima. O vento sopra gelado
como a face dum morto. Mas por que lhe vêm com tanta insistência esses pensamentos
macabros? Esta não é então a Viagem, a sua desejada aventura transoceânica? Deve
então alegrar-se, cantar . . . Procura assobiar uma ária alegre. Mas o vento lhe impõe
silêncio. Ivo sobe sempre . . . Quando senta o pé no navio, não vê mais o capitão.
Volta os olhos e só enxerga a noite, a grande noite, a densa noite.
Por que não acendem as luzes deste navio? Senhores, as luzes! Outros vultos
passam. Mulheres, homens, crianças. É aflitivo. Ivo não lhes pode ver os rostos. E o
silêncio apavorante!...
Ivo se aproxima dum homem que se acha encostado à amurada.
Por favor, meu amigo, pode me dizer se este vapor é o...
Cala-se. É assustador. Ele não sabe o nome do barco em que entrou. Como foi isso? Não
se trata então duma viagem, da "sua" desejada viagem, por tanto tempo planejada
e acariciada? Por que tudo agora está tão esfumado e confuso, como se sobre sua memória
tivesse caído um véu? Ivo começa a suar. O suor lhe escorre pelo rosto em bagas frias.
- Pode me dizer onde fica o bar?
Sim, precisa tomar uma bebida qualquer. Deve ser o frio que o deixa assim tão sem
memória, tão fraco e trêmulo.
Cavalheiro, pode me dizer onde fica o sol?
O sol? Mas ele não queria perguntar onde ficava o sol. Jurava que ia
perguntar onde ficava o bar.
Por favor, cavalheiro...
O vulto se move sem o menor ruído e some-se na sombra.
Ivo treme dos pés à cabeça. "Preciso encontrar o meu camarote" diz para
si mesmo "preciso descobrir a minha bagagem" pensa, numa
crescente aflição. "Deve existir alguém a bordo que possa me explicar.
Talvez um doutor... Sim. Estou doente..."
E agora ele tem consciência duma dor, não aguda mas continuada e martelante, bem no lado
esquerdo do peito. Leva a mão ao coração. Retira-a úmida. Será sangue ? Sim, deve
ser...
Sai a correr apavorado. Um médico! Um médico! Estou ferido, vou morrer,
socorro! Mas suas pernas, de tão leves, agora se vergam. Ivo pára. Ajoelha-se e grita
ainda: Um médico! Mas não consegue ouvir a própria voz. Ergue-se, agoniado. Homens,
mulheres e poucas crianças continuam a passar. São ainda sombras sem vozes nem gestos.
Ivo procura orientar-se na escuridão. Parece-lhe agora enxergar contornos mais nítidos.
Sim. Ali está uma porta. Um corredor. Se ele entrar no corredor talvez ache o seu
camarote. Tem agora vagamente a lembrança dum número. 27... 27... Recorda-se de tê-lo
visto impresso em algarismos negros sobre um quadro branco. 27... Onde?
De repente tem a impressão de que na memória se lhe abre uma clareira por onde ele
enxerga o passado. Mas é apenas um relâmpago. De novo cai a névoa. Já não lhe dói
mais o peito. Tudo deve ter sido ilusão ... ele não está ferido. As sombras passam. A
bruma que vem do mar invade o navio. Onde estará o capitão? O frio e o silêncio
persistem. O barco misterioso torna a soltar um gemido rouco e prolongado. Mas - é
incrível, incompreensível, endoidecedor nem o apito consegue quebrar o
silêncio.
Ivo caminha sem destino. Não ouve o ruído dos próprios passos. Não tropeça
em nada. Aproxima-se da amurada e olha o mar. Só vê a escuridão velada duma bruma de
cor doentia.
Um homem se aproxima dele. Ivo olha-lhe o rosto.. Já se lhe distinguem alguns traços.
Decerto o hábito da escuridão. Céus, mas que rosto pálido! Parece a cara dum cadáver.
A pele está ressequida e tem um tom esverdeado. Os olhos, parados e sem brilho. Os dentes
arreganhados...
Agora aparecem outras faces. Uma criança sorrindo um sorriso horrendo. Uma
mulher com os olhos furados escorrendo sangue. Um velho com a boca queimada de ácido. Ivo
solta um grito... Mas o silêncio continua. Onde estarei? pensa ele. Onde
estarei? Faz um esforço dolorido para se lembrar.
Quem sou eu? Como foi que vim parar aqui? Onde estão os meus amigos, as pessoas que eu
via todos os dias?
O frio aumenta. Ivo sente-se desfalecer. Tem a impressão de estar boiando
nas ondas dum mar gelado, como um náufrago; como um iceberg...
Camarote 27! diz Ivo, - 27... 27... Seus lábios se movem, mas nenhum som
perturba o silêncio do grande barco e da enorme noite.
De repente uma onda morna lhe invade o corpo. Pela proa do navio começa a
nascer uma luz, pálida a princípio, mas a pouco e pouco se fazendo mais viva e dourada.
Os olhos de Ivo se agrandam. Aquela luminosidade vai ser a explicação de tudo, a volta
da memória... Sim, ele vai descer pela prancha e ganhar o cais. O cais também é negro e
silencioso. Mas não há nada como a terra firme. Ele não quer viajar neste vapor
tenebroso cujos passageiros são fantasmas. O mar desconhecido é um pavor na noite. Oh
Deus! - pensa Ivo - como foi que eu cheguei a desejar esta viagem!? Que louco! Que louco!
A luz cresce. O calor aumenta. A voz amiga se ouve mais forte: "Ivo, meu querido,
fica comigo!" Sim, ele quer ficar. E preciso fugir do capitão do barco noturno. Ivo
dá dois passos para a luz.
Ajoelhada ao pé da cama a moça aperta e beija a mão pálida do rapaz.
Ivo, não quero que morras, não quero. Por que foi que fizeste isso? Por que foi?
Com a seringa de injeção numa das mãos, o médico contempla o rosto pálido do suicida.
Pobre diabo! Perdeu tanto sangue... O corpo está quase frio.
A um canto do quarto, a dona da casa, torcendo o avental, olha muito assustada para a
cama. "Por causa do que me devia, ele não precisava fazer isso. Eu podia esperar.
Não tinha importância. Deus me perdoe. Se eu soubesse, não tinha vindo hoje trazer a
conta. Logo hoje, Nossa Senhora!"
Ao pé da janela, o porteiro da casa conversa com um agente de polícia.
De onde era ele?
Do interior.
Tinha família?
O porteiro encolhe os ombros.
Era um moço muito calmo, muito delicado. Andava sem emprego. Eu dizia para ele
que tivesse paciência. Mas qual! Não agüentou... Há gente nervosa.
Falam já de Ivo como quem fala dum morto. O médico aproxima-se do grupo.
Fiz uma tentativa desesperada. Injetei-lhe adrenalina no coração. Sacode
a cabeça. Não tenho muita esperança. Enfim... acontecem milagres...
Ao ouvir a palavra milagre a velha começa a rezar.
De repente a moça se ergue, como que impelida por uma mola.
Doutor! Ele está se mexendo... venha! Venha! Os três homens se aproximam da cama.
O rosto de Ivo se move, seus olhos se entreabrem. Há um breve instante de aflitiva
esperança. Ivo como que se baloiça, indeciso, por sobre as tênues fronteiras que
separam a vida da morte.Mas parece haver do outro lado um chamado mais forte. O corpo se
imobiliza.
O doutor inclina-se e ausculta-lhe o coração. Olha para a moça e diz, baixinho:
Sinto muito. Mas não há mais nada a fazer. A dona da casa desata a chorar. Com o
rosto contraído numa expressão mais de estupefação que dedor, a rapariga olha do
médico para o morto, do morto para a folhinha da parede, onde o número 27 em letras
negras se destaca sobre o quadrado branco. Iam contratar casamento, hoje, hoje...
O transatlântico vai partir. O transatlântico apita. É um gemido rouco,
longo, doloroso, desesperado, irremediável. Debruçado à amurada, Ivo olha o
vácuo. Agora é uma sombra resignada entre as outras sombras. O vento do
grande mar desconhecido varre o barco dos suicidas. E todos eles ali vão em
silêncio, enquanto na ponte o fantástico Capitão olha com seus olhos vazios
a noite insondável.
Texto extraído do livro "Contos" (série paradidática), Ed. Globo - Porto
Alegre - 1978, pág. 13.
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