Lépida e leve
Gilka Machado
Lépida e leve
em teu labor que, de expressões à míngua,
O verso não descreve...
Lépida e leve,
guardas, ó língua, em seu labor,
gostos de afagos de sabor.
És tão mansa e macia,
que teu nome a ti mesmo acaricia,
que teu nome por ti roça, flexuosamente,
como rítmica serpente,
e se faz menos rudo,
o vocábulo, ao teu contacto de veludo.
Dominadora do desejo humano,
estatuária da palavra,
ódio, paixão, mentira, desengano,
por ti que incêndio no Universo lavra!...
És o réptil que voa,
o divino pecado
que as asas musicais, às vezes, solta, à toa,
e que a Terra povoa e despovoa,
quando é de seu agrado.
Sol dos ouvidos, sabiá do tato,
ó língua-idéia, ó língua-sensação,
em que olvido insensato,
em que tolo recato,
te hão deixado o louvor, a exaltação!
Tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas!
Tu que orquestrar soubeste as carícias supremas!
Dás corpo ao beijo, dás antera à boca, és um tateio de
alucinação,
és o elástico da alma... Ó minha louca
língua, do meu Amor penetra a boca,
passa-lhe em todo senso tua mão,
enche-o de mim, deixa-me oca...
Tenho certeza, minha louca,
de lhe dar a morder em ti meu coração!...
Língua do meu Amor velosa e doce,
que me convences de que sou frase,
que me contornas, que me veste quase,
como se o corpo meu de ti vindo me fosse.
Língua que me cativas, que me enleias
os surtos de ave estranha,
em linhas longas de invisíveis teias,
de que és, há tanto, habilidosa aranha...
Língua-lâmina, língua-labareda,
língua-linfa, coleando, em deslizes de seda...
Força inféria e divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustica, língua-cocaína,
língua de mel, língua de plumas?...
Amo-te as sugestões gloriosas e funestas,
amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor,
pela carne de som que à idéia emprestas
e pelas frases mudas que proferes
nos silêncios de Amor!...
Gilka da Costa de Melo Machado nasceu no Rio de Janeiro (RJ) no
dia 12 de março de 1893. Casou-se com o poeta Rodolfo de Melo Machado em 1910. Teve dois
filhos: Helio e Eros. O marido, Rodolfo, faleceu em 1923. Seu primeiro livro de poesia,
Cristais Partidos, foi publicado em 1915. Em 1916 foi publicada sua
conferência A Revelação dos Perfumes", no Rio de Janeiro. Em 1917 publicou
Estados de Alma e, em seguida, no ano de 1918, Poesias, 1915/1917,
Mulher Nua, em 1922, O Grande Amor, Meu Glorioso
Pecado, em 1928, e Carne e Alma, em 1931. Em 1932, foi publicada em
Cochabamba, Bolívia, a antologia Sonetos y Poemas de Gilka Machado, com
prefácio Antonio Capdeville. No ano seguinte, a escritora foi eleita "a maior
poetisa do Brasil", por concurso da revista "O Malho", do Rio de Janeiro.
Sublimação foi publicada em 1938, Meu Rosto em 1947, Velha
Poesia em 1968 e suas Poesias Completas editadas em 1978. Em 1979, foi
agraciada com o prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras. Nesse mesmo
ano a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro prestou homenagem à mulher
brasileira na pessoa da poeta. Escreveu versos, sendo simbolista, considerados
escandalosos no começo do século XX, por seu marcante erotismo. Faleceu no Rio de
Janeiro (RJ), no dia 11 de dezembro de 1980.
Publicado em "Poesias Completas", Léo Christiano Editorial Ltda. - Rio de
Janeiro, 1992, foi selecionada por Ítalo Moriconi e faz parte do livro "Os cem
melhores poemas brasileiros do século", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2001,
pág. 75.
|