Paracetamol
Luís Dill
Acordei e ela, ?claro, tinha ido embora. Melhor assim. Havia levado para bem longe a
estúpida bolsa de croch? a risada rouca de bêbada e a conversa pretensiosa de
universitária deslumbrada. Ficou apenas a brutal dor dentro da minha cabeça. Amassante a
ponto de transformar Tylenol em 750 miligramas de ouro. Bebida e cigarros demais.
A luz do mundo explodia janela adentro berrando seu bom-dia fantasmagórico para minha
ressaca. Tentei não dar atenção a ela e me concentrei apenas no trajeto at?o
banheiro. Arrastei os pés pelo p?do assoalho: iludidos pelo vinho barato, os poucos
centímetros vestiam-se com as cores do deserto seco coberto de cáctus e embalado pelo
calor de ferro derretido. De algum modo minha nudez ainda tatuada com os fluídos da
fulaninha ofendia a tediosa manh?de mais um maldito domingo.
Sentei no vaso para executar o último movimento da clássica sinfonia. As duas primeiras
partes j?estavam presentes. Domingo e Ressaca. Restava compor s?o fechamento, a
conclusão da obra matinal. Faltava a Defecada em allegro vivace. Todos os naipes
da orquestra entraram em ação, com a fúria e a urgência de um regente cheirado,
enlouquecido, ávido por expulsar cada acorde na mais pesada possibilidade, certo de
tencionar os instrumentos para além dos seus limites at?o vazio mais fatigado.
Depois, j?de p? os rastros das lágrimas secando no rosto, vigiei o resultado
sinfônico por um momento. Formatos e densidades indicando o trajeto de cada ato anterior,
desde o xis-salada e a cerveja do começo da noite passada, at?a garrafa de vinho branco
em promoção no supermercado misturada com a conversa fiada e os beijos desajeitados da
fulaninha. Tudo ali. Irremediavelmente expelido. Pronto para ser esquecido com o banal
puxar da cordinha sob aplausos atropelados, borbulhantes, da audiência satisfeita.
A idéia de banho cruzou pela minha cabeça. Cruzou. Mas não ficou. Ali nos meus miolos
s?havia espaço para dor, feito a porcaria de um cáctus florescendo enérgico com
espinhos tentando furar meu crânio pelo lado de dentro. Dane-se o banho, dane-se escovar
os dentes, dane-se lavar as mãos. O importante era alcançar a farmácia.
Voltei ao quarto revirado pela noitada ainda distante do ponto de recepção da minha
memória. Sólida neblina alcoólica turvava os acontecimentos, embora não fosse
necessário ser brilhante para saber exatamente a ordem dos fatos. Não achei minha cueca
e não me importei com isso, eu nem mesmo gostava de us?las. Enfiei a calça, a camisa
xadrez de manga curta e os sapatos. Não me dei ao trabalho de procurar pelas meias.
Na mesa da sala encontrei a carteira e um rolo de filme. Chequei-a. A pilantra não tinha
tirado nada. Examinei o pequeno rolo de metal. Sorri. Aquele sol todo havia furado um
canto da barreira da cerração, o suficiente para ver os flashes iluminando a escuridão
do quarto tomado pelas risadas roucas dela. Nem todas se deixavam fotografar em momentos
íntimos como aquele. Normalmente as mais jovens. Em geral as mais velhas usavam qualquer
coisa como desculpa. Filhos, maridos, vizinhos, gordura, religião, psiquiatras, o diabo.
Eu a peguei onde todas as mulheres querem ser pegas. Elas não vão aos bares s?para
conversar com as amigas. Querem ser apanhadas. Não foi diferente com ela. Vinte e poucos,
levemente dentuça, citou meia dúzia de escritores, filósofos, artistas e deixou clara a
enorme vontade de provar a si mesma o quanto independente era. Foi fácil. Duas cervejas
no balcão mesmo. Tirando aquela coisa dos dentes era bem apresentável. Carne boa em se
tratando da porcaria de uma intelectual.
Ótimo. Então eu colocaria mais um espécime na minha coleção de fotos. A maioria dos
registros não prestava, não possuíam o mínimo senso de enquadramento, sequer podiam
beirar a classificação de pornografia amadora. De qualquer forma preenchiam o propósito
de me distrair e, eventualmente, de me provocar boas risadas. Havia de tudo nos álbuns.
Todas as cores, todas as alturas, todas as larguras. Havia at?uma nepalesa. ? do
Nepal. Veio dar curso sei l?do qu?e acabou igualzinha às outras, capturada pelo olho
da minha velha e brava Yashica.
Não h?comédia tão deliciosa quanto ouvir alguém sustentar a babaquice sobre as
diferenças entre as pessoas. Besteira. Todas mulheres são iguais. Querem homem. Primeiro
o príncipe. Depois de algum tempo percebem a idiotice e se dão conta: o tal príncipe
tem barriga, solta gases e gosta de um trago. A?querem dinheiro e filhos, ou filhos e
dinheiro. Umas at?tentam se enganar, esbravejam, falam de princípios, disso e daquele
outro, mas se afundam no esqueminha básico e quando abrem os olhos estão ensinando os
filhos e as filhas da mesma maneira. Pluralidade? Lorota.
Sa?de casa. Toneladas de luz desabaram em violento tumulto. Sequer fechei o portão.
Precisava urgente de abrigo contra a letal estrela. Trilhões de pontas furando minhas
pálpebras enquanto a flor do cáctus se abria com graça no solo árido do meu cérebro
calcinado. Atravessei a rua sem olhar para os lados e nenhum carro teve a misericórdia de
acabar com todo aquele sofrimento. Mais uns passos at?penetrar na barriga do monstro de
concreto, aço e mau gosto. Sombra e refrigeração. Logo em frente a loja de revelação
expressa, onde o atendente com roupa de gay, penteado de gay, sorriso de gay e voz de gay
me garantiu: com certeza em, no máximo, trinta minutos eu poderia voltar para pegar as
fotos. Limitei-me a apanhar a tirinha de papel e sair dali.
Avancei contra a canalha consumista do modo como a quilha de um quebra-gelo faz seu
trabalho. A mar?de gente ansiosa por bons momentos no interior de um shopping center
sempre me irritou, sempre me aborreceu. Idiotas acreditando, por exemplo, no poder de um
expresso, como se sorv?lo com calma em poltronas duvidosas no saguão daquela imundície
os deixassem felizes e os fizessem melhores. Assim, fui avançando, tapado de nojo, louco
para cuspir na cara dos imbecis. Homens idiotas. Mulheres dementes. Velhos estúpidos.
Crianças cafajestes.
Qual diabo de razão os fazia não ficarem em suas malditas casas? Precisavam realmente
sair e poluir o mundo com seus sorrisos de lixo? A quem tentavam enganar com aquelas
carrancas falsificadas? Estavam ali, pra l?e pra c? tentando maquiar a loucura e a
depravação tão óbvia nos seus olhares e mesmo nos seus risos fedorentos.
Na farmácia, a ruivinha metida em uniforme imaculado, sorri um posso ajudar? Tylenol
setecentos e cinqüenta. Desculpa, t?em falta. Como assim? T?em falta, acabou o
estoque. Tu t?de sacanagem comigo? Não, senhor, terminou mesmo. Maldição. Mas eu
tenho genérico. Não tem Tylenol, ?isso? O genérico ?a mesma coisa, custa menos.
Sa?dali antes de mand?la enfiar o genérico em alguma parte do seu corpo. Ruivinha
salafrária. O cáctus desgraçado estourando, quase saindo pela minhas orelhas, e ela me
vem com conversa mole. Não pedi morfina, não pedi a cura do câncer, s?a droga de um
comprimido para dor de cabeça.
O quebra-gelo de volta ao oceano. Um esbarrão. Um único esbarrão e eu não responderia
por mim. Seria capaz de socar o focinho de alguém, qualquer um, homem, mulher, velho,
criança, cachorro, não importa, socaria e s?pararia quando o sangue alheio me cegasse
ou quando me tirassem de cima, tanto faz.
Entrei na tabacaria e fui logo ignorando o boa-tarde do gorducho empoleirado atrás do
balcão, eu j?estava farto de simpatia e de delicadeza, por isso pedi cigarro e caixa de
fósforos j?puxando a notas da carteira, esperando as moedas, deliciado com a cara
contrafeita do gorducho, por certo decepcionado pelo fato de eu não ter embarcado naquele
papo furado de boa-tarde coisa e tal, uma cara tão contrafeita a ponto de me fazer usar
mais rispidez para perguntar um Tylenol setecentos e cinqüenta nem pensar?, e ele, me
passando o troco sem sequer erguer os olhos, Tylenol s?na farmácia, como se eu fosse o
inútil de um demente.
Comecei a fumar, duas tragadas e um vigia, senhor, senhor, ?proibido fumar aqui dentro.
A vontade de esmagar a brasa do olho do infeliz. Não fiz isso, mas também não apaguei.
Continuei fumando enquanto saia pela porta automática, para a sombra de uma das
ridículas abas arredondadas certamente projetadas por algum gay presunçoso. Um casal
também fumava no refúgio de excluídos. Ela lembrava a intelectual dentuça. Flashes
durante a noite. Cedo ainda para lembrar. As fotos com certeza ajudariam no processo.
A farmácia mais próxima? Quatro quarteirões lomba acima. Não. Sentei na borda do
canteiro de mármore, as costas contra a coluna sextavada. Melhor ficar fumando, deixando
o tempo passar, apanhar as fotos e s?então iniciar a expedição sob o desespero do
sol. Acendi o segundo cigarro ouvindo os alegres apitos insistentes vindos da praça
próxima, onde devia estar em andamento outro dos estúpidos torneios de futebol infantil.
Fiquei ali. Pessoas felizes entravam, pessoas felizes saíam. Admiravam o sol como se
fosse inédito e glorioso, infinito e rejuvenescedor. O dia lhes parecia um oceano de
calor amarelado e todos, todos sem exceção, mostravam-se dispostos a beb?lo em grandes
bocados.
O atendente com roupa de gay, penteado de gay, sorriso de gay e voz de gay informou
satisfeito saíram treze poses, qual a forma de pagamento? Apanhei o envelope, estendi o
dinheiro. O senhor não tem menos? Sacudi a cabeça. O cáctus não saíra pelas orelhas
afinal. Descia pelo pescoço, aproximava do meu coração seu emaranhado de espinhos e de
flores mórbidas. Falar machucava. A nicotina apenas me entreteve, não amenizou em nada a
conseqüência dos excessos noturnos. Ele disse qualquer coisa sobre arrumar troco na loja
ao lado, voltar logo. Rasguei o pacote.
Na primeira foto, a dentuça segura cálice de vinho sentada no sof?da minha sala.
Sorri. Na seguinte est?séria, a mão espalmada tentando proteg?la do flash. A
próxima ?quase a repetição da segunda, mas os olhos estão fechados e a boca aberta
na sílaba de alguma repreensão. Engraçado. Não lembrava de ter sido necessário usar
de insistência para fazer a intelectual otária se revelar diante da velha e brava
Yashica. A quarta pose est?tremida, revela o chão da sala, parte do p?descalço da
mulher. A subseqüente apanhou apenas um borrão, possivelmente o vestido dela. Da?para
frente o cáctus escureceu minha visão.
Esqueci o troco, coloquei tudo de volta no envelope. Voltei ?farmácia, ?ruivinha.
Encontrei o mesmo uniforme impecável, a mesma simpatia. O sorriso da balconista tinha
estranha semelhança com o da dentuça, eternizado por reagentes químicos nas outras oito
emulsões impressionadas pela luz do meu flash. A diferença era o corpo tremendamente
mutilado na garagem da minha casa.
A ruivinha precisou repetir a pergunta. Serve o genérico? Conformado, eu disse serve,
serve.
Luís Augusto Campello Dill nasceu em 04 de abril de 1965, em Porto Alegre
(RS). Formou-se em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica daquela cidade.
Trabalha na Rádio FM Cultura e na Rádio Guaíba AM, de Porto Alegre, onde ?editor de
programas culturais. Na área cinematográfica ?produtor, roteirista e diretor de
curtas-metragens.
Entre seus livros, estão Olhos de rubi, finalista do Prêmio Açorianos 1997,
categoria Infanto-Juvenil, e Lâmina cega, finalista do Prêmio Açorianos
2000, categoria Narrativa Longa. Tem publicados ainda A caverna dos diamantes,
Arca de haicais, O punhal de jade, A noite das
esmeraldas e Sombras no asfalto".
O texto acima nos foi gentilmente enviado pelo escritor.
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