Do coração de uma mulher
Lucilene Machado
A bem da verdade, não sou essa mulher fatal que você pensa que eu sou. Aquelas
histórias de sedução foram todas inventadas e esse ar superior, de quem sabe lidar com
a vida, é apenas autodefesa.
Aquelas frases filosóficas, foram só pra te impressionar, pra te passar essa ilusão de
intelectual... na verdade eu ainda nem sei se acredito nos valores que me ensinaram,
quanto mais em frases feitas e opiniões formadas!
Senta aí, vai! Deixa eu tirar os sapatos, desmanchar o penteado, retirar a maquiagem...
quero te mostrar que assim de perto não sou tão bonita quanto pareço, por isso uso
todos esses artifícios. É que no fundo tenho um medo terrível de que você me ache
feia, de que você encontre em mim uma série de imperfeições.
Sabe, não quero mais usar essa máscara de mulher inatingível, de mulher forte com
punhos de aço... No íntimo me sinto uma pequena ave indefesa, leve demais para enfrentar
o vento, e, deseja ficar no aconchego do ninho e ser mimada até adormecer.
Olha pra mim, às vezes minha intimidade não tem brilho algum e você terá que me amar
muito para suportar essa minha impotência.
Deixa eu tirar o casaco, tirar o cansaço... essa jornada dupla me deixa tão carente... A
convicção de independência afetiva? É tudo balela! Eu queria mesmo era dividir a cama,
a mesa, o banho... Queria dividir os sentimentos, os sonhos, as ilusões... um pedaço de
torta, uma xícara de café, algum segredo...
Ah, eu tenho andado por aí, tenho sido tantas mulheres que não sou! Quantas vezes me
inventei e até me convenci da minha identidade. Administrei minha liberdade. Tomei
aviões, tomei whisky... troquei a lâmpada, abri sozinha o zíper do vestido... decidi o
meu destino com tanta segurança! Mas não previ que na linha da minha vida estivesse
demarcada uma paixão inesperada.
Agora, cá estou eu, trinta e poucos anos e toda atrapalhada, tentando um cruzar de pernas
diferente, um olhar mais grave, um molhar de lábios sensual... mas não sei direito o que
fazer para agradar.
Confesso que isso me cansa um pouco. Queria mesmo era falar de todos os meus medos,
"dos seus medos?" você diria, como se eu nunca tivesse temido nada. Queria te
falar das minhas marcas de infância, dos animais que tive, do meu primeiro dia de aula...
queria falar dessas coisas mais elementares, e te levar na casa da minha mãe, te mostrar
meu álbum de retrato (eu, me equilibrando nos primeiros passos), ah, queria te mostrar
minha primeira bicicleta, com truques. Ela ainda existe! Queria te mostrar as árvores que
eu plantei (como elas cresceram!) e todas essas coisas que são tão importantes pra mim e
tão insignificantes aos outros.
Ah, você queria falar alguma coisa? Está bem! Antes, só mais uma coisinha: estou
morrendo de medo que você saia desta cena antes de mim, que você saia à francesa desta
história, e eu tenha que recolocar minha máscara e me reinventar, outra vez.
Lucilene Machado (1965), é cronista no jornal Correio do Estado
- MS, membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e da UBE-MS, Tem dois livros
publicados, um de poesia, outro de literatura infantil. Possui artigos publicados na
Itália, Espanha e Venezuela. Professora do Departamento de Letras da Universidade do
Estado do Mato Grosso.
O texto acima nos foi gentilmente enviado pela escritora.
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