Dia dos namorados
Marçal Aquino
O rapaz e a moça entraram na pousada e, de um jeito tímido, ele perguntou o preço da
diária. O velho Lilico informou e o rapaz e a moça trocaram um olhar em que faiscaram
jóias de diversos tamanhos. A maior delas era a cumplicidade.
Enquanto o rapaz preenchia a ficha de entrada, a moça se afastou um pouco para examinar
melhor o quadro na parede e pude vê-la por inteiro.
Era muito bonita. Tinha os cabelos e a pele claros. Alta, magra, ossos salientes nos
ombros. Estava no mundo há pouco mais de uma década e meia e, com certeza, alguém que
recusara já havia escrito poemas desesperados pensando nela. Ou cortado os pulsos
o que é quase a mesma coisa.
Embora não merecesse, o quadro recebeu toda sua atenção por alguns instantes. Era uma
pintura ordinária. Eu já tivera a oportunidade de analisá-la durante as longas tardes
em que a chuva me impedia de sair para caminhar pela cidade. Uma cidade habitada, fora da
temporada turística, por velhos, aposentados e hippies extemporâneos. Gente que tentava,
de um jeito ou de outro, ser esquecida.
O quadro: penso que o artista havia experimentado um momento de genuína felicidade ao
contemplar, em algum canto do país, aquelas montanhas, aquele prado, aqueles cavalos. E,
generoso, decidira compartilhar esse momento com o resto da humanidade. Mas a verdade é
que fracassara. A arte não é feita de boas intenções.
O olhar com que a moça se despediu para sempre daquela obra continha um
pouco de piedade. E, com isso, ela me conquistou em definitivo.
O velho Lilico entregou a chave ao rapaz, que se voltou e sorriu para a moça. Seu ar era
de alguém vitorioso. Mas sou capaz de apostar que a mão que ele juntou à dela, antes de
subirem a escada de madeira, tinha a palma molhada de suor. Havia um princípio de rubor
no rosto dela. Eram muito jovens e estavam vivendo um grande momento, mas não sabiam
disso ainda. Essas coisas a gente só compreende depois.
Lilico deixou o balcão da recepção e foi até a copa, onde falou alguma coisa para
Jair, um de seus empregados. Em seguida veio até a mesa que eu ocupava.
"Gosto de gente que chega para hospedar-se sem nenhuma bagagem", ele comentou.
"E a felicidade que eles carregam, não conta?", eu perguntei.
Ele examinou o tabuleiro, como se estivesse tentando rememorar a jogada que pretendia
fazer antes de ser interrompido pela chegada do casal.
"Mandei o Jair levar uma garrafa de champanhe para eles. Cortesia da casa.
"Fez bem", eu disse.
"Gozado, sabe quem essa moça me lembrou?"
Eu disse: "Sei".
"Acho que foram os olhos dela", ele falou. "Muito parecidos."
Retomamos o jogo e não falamos mais do casal. Eu, porém, continuei pensando neles. Num
dia como aquele, anos antes, uma mulher, que entrava comigo num hotel bem diferente
daquela pousada, me dissera: "Hoje eu vou te dar um presente muito especial".
Um pouco depois da meia-noite interrompemos o jogo e o velho Lilico recolheu as peças e
guardou o tabuleiro. E eu já estava no meio da escada, a caminho do meu quarto, quando
ele perguntou:
"Você ainda pensa nela?"
"De vez em quando eu penso."
"E por que você não vai atrás dela? Vocês dois ainda têm alguns anos pela
frente."
"A mágica não acontece duas vezes", eu disse.
O velho Lilico balançou a cabeça.
"Você sabe que só em filme francês antigo o herói termina seus dias em hotéis
vagabundos, escrevendo livros que nunca irá publicar.
Eu me limitei a sorrir. Então ele me desejou "boa noite" e voltou para a
recepção.
Eu subi a escada e, ao chegar ao corredor, parei diante da porta do quarto que o casal
ocupava e tentei ouvir alguma coisa. Mas tudo estava silencioso. Entrei nó meu quarto e,
enquanto me despia, pensei no velho Lilico. Ele tinha razão: ainda me restavam alguns
anos pela frente. E essa era a pior parte da história.
Marçal Aquino nasceu em 1958 na cidade de Amparo (SP). Jornalista, trabalhou
como revisor, repórter e redator nos jornais O Estado de S.Paulo e
Jornal da Tarde. Atualmente, trabalha como jornalista free-lancer. Escreve
ficção adulta e juvenil, faz roteiros para o cinema, tendo atuado como consultor no IV
Laboratório de Roteiros Sundance/RioFilme, a convite do Sundance Institute, dos E.U.A.,
em 2002.
Alguns dos trabalhos do autor:
Prosa:
O invasor.
Faroestes.
O amor e outros objetos pontiagudos
(Prêmio Jabuti 2000).
As fomes de Setembro
(Prêmio V Bienal Nestlé de Literatura Conto (1991).
Miss Danúbio
(Prêmio do Concurso de Contos do Paraná).
Cabeça a prêmio.
Famílias terrivelmente felizes.
Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios
Poesia:
Abismos Modo de usar.
Por bares nunca antes naufragados.
Juvenis:
O mistério da cidade-fantasma.
O jogo do camaleão.
O primeiro amor e outros perigos.
A turma da rua Quinze.
Coleção Sete Faces.
Roteiros de cinema:
Os matadores.
Ação entre amigos.
O invasor.
Nina.
O texto acima foi extraído do livro "Geração 90: manuscritos de computador",
Boitempo Editorial - São Paulo, 2001, pág. 18.
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