Ser? o Benedito!
M?rio de Andrade
A primeira vez
que me encontrei com Benedito, foi no dia mesmo da minha chegada na Fazenda Larga, que
tirava o nome das suas enormes pastagens. O negrinho era quase s? pernas, nos seus treze
anos de carreiras livres pelo campo, e enquanto eu conversava com os campeiros, ficara
ali, de lado, im?vel, me olhando com admira??o. Achando gra?a nele, de repente o
encarei fixamente, voltando-me para o lado em que ele se guardava do excesso de minha
presen?a. Isso, Benedito estremeceu, ainda quis me olhar, mas n?o p?de ag?entar a
como??o. Mistura de mal?cia e de entusiasmo no olhar, ainda levou a m?o ? boca, na
esperan?a talvez de esconder as palavras que lhe escapavam sem querer:
O h?me da cidade, chi!...
Deu uma risada quase hist?rica, estalada insopitavelmente dos seus sonhos insatisfeitos,
desatou a correr pelo caminho, macaco-aranha, num mexe-mexe aflito de pernas, seis, oito
pernas, nem sei quantas, at? desaparecer por detr?s das mangueiras grossas do pomar.
***
Nos primeiros
dias Benedito fugiu de mim. S? l? pelas horas da tarde, quando eu me deixava ficar na
varanda da casa-grande, gozando essa tristeza sem motivo das nossas tardes paulistas, o
negrinho trepava na cerca do mangueir?o que defrontava o terra?o, uns trinta passos
al?m, e ficava, s? pernas, me olhando sempre, decorando os meus gestos, ?s vezes
sorrindo para mim. Uma feita, em que eu me esfor?ava por prender a r?dea do meu cavalo
numa das argolas do mangueir?o com o la?o tradicional, o negrinho saiu n?o sei de onde,
me olhou nas minhas ignor?ncias de praceano, e n?o se conteve:
- Mas ser? o Benedito! N?o ? assim, mo?o!
Pegou na r?dea e deu o la?o com uma presteza serelepe. Depois me olhou ir?nico e
superior. Pedi para ele me ensinar o la?o, fabriquei um desajeitamento muito grande, e
assim principiou uma camaradagem que durou meu m?s de f?rias.
***
Pouco aprendi
com o Benedito, embora ele fosse muito sabido das coisas rurais. O que guardei mais dele
foi essa curiosa exclama??o, "Ser? o Benedito!", com que ele arrematava todas
as suas surpresas diante do que eu lhe contava da cidade. Porque o negrinho n?o me
deixava aprender com ele, ele ? que aprendia comigo todas as coisas da cidade, a cidade
que era a ?nica obsess?o da sua vida. Tamanho entusiasmo, tamanho ardor ele punha em
devorar meus contos, que ?s vezes eu me surpreendia exagerando um bocado, para n?o dizer
que mentindo. Ent?o eu me envergonhava de mim, voltava ?s mais perfeitas realidades, e
metia a boca na cidade, mostrava o quanto ela era ruim e devorava os homens. "Qual,
Benedito, a cidade n?o presta, n?o. E depois tem a tuberculose que..."
- O que ? isso?...
- ? uma doen?a, Benedito, uma doen?a horr?vel, que vai comendo o peito da gente por
dentro, a gente n?o pode mais respirar e morre em tr?s tempos.
- Ser? o Benedito...
E ele recuava um pouco, talvez imaginando que eu fosse a pr?pria tuberculose que o ia
matar. Mas logo se esquecia da tuberculose, s? alguns minutos de mutismo e melancolia, e
voltava a perguntar coisas sobre os arranha-c?us, os "chauffeurs" (queria ser
"chauffeur"...), os cantores de r?dio (queria ser cantor de r?dio...), e o
presidente da Rep?blica (n?o sei se queria ser presidente da Rep?blica). Em troca
disso, Benedito me mostrava os dentes do seu riso extasiado, uns dentes escandalosos,
grandes e perfeitos, onde as violentas nuvens de setembro se refletiam, numa brancura sem
par.
Nas v?speras de minha partida, Benedito veio numa corrida e me p?s nas m?os um chuma?o
de pap?is velhos. Eram cart?es postais usados, recortes de jornais, tudo fotografias de
S?o Paulo e do Rio, que ele colecionava. Pela sujeira e amassado em que estavam, era
f?cil perceber que aquelas imagens eram a ?nica B?blia, a exclusiva cartilha do
negrinho. Ent?o ele me pediu que o levasse comigo para a enorme cidade. Lembrei-lhe os
pais, n?o se amolou; lembrei-lhe as brincadeiras livres da ro?a, n?o se amolou;
lembrei-lhe a tuberculose, ficou muito s?rio. Ele que reparasse, era forte mas magrinho e
a tuberculose se metia principalmente com os meninos magrinhos. Ele precisava ficar no
campo, que assim a tuberculose n?o o mataria. Benedito pensou, pensou. Murmurou muito
baixinho:
- Morrer n?o quero, n?o sinh?... Eu fico.
E seus olhos enevoados numa profunda melancolia se estenderam pelo plano aberto dos
pastos, foram dizer um adeus ? cidade invis?vel, l? longe, com seus
"chauffeurs", seus cantores de r?dio, e o presidente da Rep?blica. Desistiu da
cidade e eu parti. Uns quinze dias depois, na obrigat?ria carta de resposta ? minha
obrigat?ria carta de agradecimentos, o dono da fazenda me contava que Benedito tinha
morrido de um coice de burro bravo que o pegara pela nuca. N?o pude me conter: "Mas
ser? o Benedito!.... E ? o remorso comovido que me faz celebr?-lo aqui.
S?o Paulo,
2?. quinzena de outubro de 1939. (n?145)
Texto extra?do do livro "Ser? o
Benedito!", Editora da PUC-SP, Editora Giordano Ltda. e Ag?ncia Estado Ltda.- S?o
Paulo, 1992, p?g. 66, uma colabora??o de Jo?o Ant?nio B?hrer e seus "Arquivos
Impag?veis".
Conhe?a a vida e a obra de M?rio de Andrade visitando
"Biografias".
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