A inconsciência dos corpos à beira-mar
Marcelo Coelho
Sempre fui, sempre me considerei um gordo. A frase é hum pesada demais.
Chamar alguém de gordo é dos piores xingamentos que conheço e, no meu caso, posso mesmo
assegurar que se trata de injustiça. Há tempos, fiz um regime bem-sucedido; observadores
objetivos dirão que hoje pertenço, sem dúvida, ao time dos magros.
Mas sentir-se gordo a culpa na balança, a desestima diante do espelho, a
lembrança do peso perdido , isso continua. Tudo se torna mais difícil no verão,
é claro. A praia humilha demais os que têm barriga.
Ou melhor: o espantoso é que ninguém (exceto nós mesmos) está nem aí para o problema.
Foi grande a minha surpresa, numa das primeiras vezes que fui ao Rio, encontrar na praia
gente feia de todo tipo e não a desdenhosa população de modelos e atletas que a
fama da cidade fazia prever.
Passei uns dias no litoral paulista, num lugar que não é dos piores. Fiquei
impressionado (e contente, admito) com a sem-cerimônia dos que são muito, mas muito mais
gordos do que eu.
Um tipo clássico, instituído há décadas nas praias brasileiras, é o da mulher muito
gorda que usa maiô inteiriço preto. O maiô molhado adquire o brilho daquelas câmaras
de pneu de caminhão, por sua vez também clássicas nas represas, pesqueiros, rios e
cascatas de nosso país. Por algum motivo, a mulher corre rumo ao mar. Ela é muito
branca; deve ser o calor. A corrida é dificultada pelas suas próprias pernas, cujo
movimento obedece a eixos de rotação opostos; ela parece que vai cair. E de fato cai ao
choque da primeira onda: entrou na água com êxito.
Pois bem, a gorda do maiô inteiriço preto hoje usa biquíni também preto, é
claro. E não há motivo para que não use.
Ela não é mais estranha, afinal, do que sua contrapartida masculina, conhecidíssima de
Cabrália até Cananéia pelo menos: o homem grávido. Esse não entra na água. Caminha
paralelo ao mar, de perfil; está sempre de perfil, aliás. As pernas finas, o rosto
magro, os braços longos, tudo destaca a barriga de vários meses, que ele porta sem
orgulho, mas também sem embaraço.
Bem diferente é o tipo do ex-magro. Trata-se de figura mais recente; pelo jeito de
vestir, diríamos que remonta no máximo aos tempos do governo Figueiredo. Usa sunga e
tênis com meia branca. É um sujeito muito esportivo, faz cooper o tempo todo, tem porte
de atleta, mas, de algum modo, foi acrescido de 20 ou 30 quilos, que, contudo, não lhe
pesam. Tem preparo físico justamente para carregá-los, e disso se envaidece.
Versão anterior dessa personagem é muito comum, creio, nas praias do Rio: falo de um
tipo de militar aposentado, craque furioso da peteca, um tanto calvo, que talvez fosse
mais gordo se não estivesse seriamente desidratado. Sua pele, com efeito, adquiriu um
aspecto que não é do bronze, mas do couro curtido, do qual brotam tufos de pêlo branco.
Corpos, corpos, quantos corpos na praia, Deus meu! Costas cobertas de pêlos, de espinhas,
de protetor solar... Colunas vertebrais, como pipas, inclinadas nos mais diversos
ângulos. Há pescoços que se perderam nos entroncamentos da Piaçaguera ou da rodovia
Pedro Taques; rolaram pelo acostamento e seus donos, já na praia, não perceberam ainda a
dimensão do acidente.
Mulheres inteiras parecem se desfazer como castelos de areia no contato com o mar; há
cabeças que sobrevivem a uma espécie de erupção vulcânica, boiando sobre lavas de
carne; aqui e ali, passam homens como palafitas, que mal se equilibram sobre as canelas
vergadas ao peso do conjunto.
E ninguém está ligando a mínima. Não digo que haja bem-estar, um cego contentamento
com o próprio físico, mas o que se nota em quase todo mundo, na praia, é uma forma
fundamental de inconsciência: aquela inconsciência que deriva do simples fato de
existir.
Gordo ou magro, velho ou jovem, o sujeito está ali, ao sol. Considerá-lo
"exposto" ao olhar alheio já é, de certo modo, um abuso, um atentado à
privacidade. Quem está na praia não se sente o tempo todo sob a avaliação crítica de
seus dessemelhantes. É fator de sobrevivência psicológica, sem dúvida, o dom que todos
temos de nos esquecer de como somos.
Mas deve haver algo de errado numa população que corresponde tão mal a seus próprios
padrões de beleza física. Passamos o dia vendo mulheres lindíssimas e homens perfeitos
nas revistas, nos outdoors e na TV. Há academias e regimes por toda parte. A
inconsciência de todos os corpos na praia logo se interrompe em vergonha, resoluções de
Ano Novo, esforços de pedestrianismo ou algum momentâneo impulso de correr -sim, talvez
a isso estivesse entregue a gorda do maiô preto lá em cima.
Na praia é que vemos, na verdade, a enorme desadaptação da maioria da classe média, ou
seja lá que nome tenha, à vida ao ar livre. Só os muito jovens ainda não sofreram
alguma das deformações causadas pelo cotidiano. São tanto as deformações do trabalho
-computador, telefone, escritório, carro como as do ócio comida, bebida,
TV, por exemplo.
Não vou defender nenhum tipo de "volta à natureza", mas não deixa de ser
irônico que tenhamos tantas invenções destinadas a poupar trabalho e energia, de um
lado, e tantos recursos para evitar a subnutrição e o tédio alimentar, de outro, e que
isso termine sendo fonte de descontentamento na grande maioria da classe média.
Infelizes com seus corpos, as pessoas depositam suas esperanças sem muita
persistência, é verdade na adesão aos rigores do trabalho braçal e da fome.
Claro que o nome é diferente: busca-se o trabalho braçal nas academias de luxo e a fome
nos livros de regime para gourmets. Classe é classe. Perder peso, com sorte, até que
dá; mas daí a perder posição social é outra história.
Marcelo Coelho (1959) é paulista e formou-se em Ciências Sociais pela
Universidade de São Paulo. Trabalhou por alguns anos como professor universitário antes
de dedicar-se à atividade jornalística na Folha de S. Paulo. Iniciou sua
trajetória no jornal como editorialista e participou do grande projeto de reforma do
jornal em 1984 liderado por Otavio Frias Filho. Foi coordenador de editoriais e a partir
de 1990 começou a assinar uma coluna semanal no caderno Ilustrada. Publicou
os romances Noturno (1992) e Jantando com Melvin (1998), traduziu obras de Voltaire e Paul
Valéry, entre outros, e escreveu livros infantis. Seleções de textos publicados na
Folha de S. Paulo estão reunidos em dois volumes, Gosto se Discute (1995) e Trivial
Variado (1998). Desde 1994 leciona jornalismo cultural nas Faculdades Cásper Líbero, em
São Paulo. Marcelo Coelho criou uma modalidade particular de crônica, que
combina o ensaio acadêmico, o resenhismo dos cadernos culturais e o comentário do
detalhe cotidiano e discute aspectos sociológicos, antropológicos e estéticos do
impacto dos produtos culturais na vida contemporânea. O texto acima foi publicado no
jornal Folha de São Paulo, São Paulo, edição de 15/01/2003.
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