Barata à Vista
Millôr Fernandes
A barata é a mais lídima das aquisições democráticas do mundo. Quase toda a casa a
possui. Aos pobres lhes cabe melhor quinhão desses insetos, muito embora o Sr. Guinle
não possa se queixar pois o Copacabana também as tem apesar de todo o DDT. Pertencendo
à família das BLATÍDEAS, muito conhecida nos buracos de rodapés, cantos de estantes,
fundos de arquivos e de gavetas, as baratas têm hábitos próprios interessantíssimos
com os quais me familiarizei nos meus longos anos de pertinaz contato com arcanos e
alfarrábios.
Para se lidar com baratas há quem acredite em inseticidas e baraticidas. Como em tudo
mais, acredito em psicologia. Para se aplicar a psicologia é preciso um certo método e
uma vasta disciplina. Vejamos.
Encontra-se a barata. Para se encontrar uma barata não é preciso muito gasto de energia.
Em geral ela nos procura. E mais em geral ainda ela vem ao meio de nossos dedos quando
pegamos aquela pilha de livros que estava embaixo da escada. No momento em que sentimos a
barata presa em nossos dedos um sentimento de horror inaudito corre nossa espinha.
Largamos livros, agitamo-nos furiosamente, batemos no chão, nos móveis e nos livros com
o primeiro pano ou jornal que se nos depara, mas, a essa altura, a barata já estará
longe, escondida numa das 365 mil páginas dos 870 livros que espalhamos no chão. Como
encontrá-la? eis o problema. Esse problema, depois de acalmados nossos nervos e
esfregadas nossas mãos com sabão e bastante álcool, é que procuramos resolver.
Existe, para se pegar uma barata, dois processos distintos. Um é chamar a empregada e
dizer: "Tem uma barata aí! Quero isso bem limpo!" e virar covardemente as
costas. Dessa atitude pode resultar que a barata atinja um extraordinário grau de
longevidade pois a empregada passará um pano nos livros e jogará por cima deles um pouco
de DDT, dando-se por satisfeita. A barata também. E daqui há seis meses, quando você
for pegar aquele velho exemplar de Balzac, terá a desagradável surpresa de ver, à
página 276, olhando-o com aqueles olhos brejeiros e aquelas antenas irônicas que lhe
são próprios, a mesma barata que você tinha condenado à morte. Vocês fitar-se-ão
demoradamente. Ela continuará baloiçando as antenas. E você, depois de um segundo de
inércia, saltará para o ar, jogará o livro para o outro lado e berrará femininamente.
Pois eis que as baratas têm o extraordinário poder de nos afeminar a todos, afirmativa
essa que se aceitará sem contestação se se atentar para o grande número de baratas que
há em nossos teatros.
Portanto não se deve virar as costas a uma barata, como fazem os elementos da ribalta,
mas sim enfrentá-la masculamente. Para isso precisamos, antes de mais nada, saber se a
barata é uma BLATÍDEA comum ou se é uma PERIPLANETA AMERICANA, ou, em linguagem menos
científica, uma dessas baratas que voam. Se é dessas aconselho o leitor a desistir de
qualquer pretensão máscula, arrumar as malas, fechar as portas de sua casa e entrar para
o Teatro.
Agora, se é das outras, sempre há recursos:
1 Pegue um Correio da Manhã bem dobrado, deixando à mostra o artigo de
fundo. Sacuda os livros e espere, trepado numa cadeira. Atente sobretudo para o estilo de
bater quando a barata surgir. Lembre-se: o estilo é o homem.
2 Quando a barata surgir bata de uma vez. Não durma na pontaria. Ela normalmente
pára um pouquinho, para sondar o ambiente cá de fora e confrontá-lo com a literatura em
que vive metida. esse o momento de atacar.
3 Trate de verificar se o inseto em que você está batendo é uma barata ou um
barato. Nunca se esqueça: o barato sai caro.
4 Nunca aproxime e afaste o jornal para fazer pontaria. As baratas sabem muito bem
o que as espera quando sentem esse ventinho, quando você bater de verdade ela já terá
embarcado para a Europa.
5 Não tenha pena de bater. Bata firme, forte, decididamente. É a vida dela ou a
sua. Se você não a matar terá que passar a existência inteira alimentando-a a
inseticida.
6 Não se importe com as coisas que o cercam. Afinal de contas que são meia dúzia
de copos partidos, um tapete manchado, dois livros com as páginas rasgadas e uma perna de
cadeira quebrada se você conseguiu eliminar uma barata?
7 Se falhar, só a paciência lhe dará outra oportunidade. A barata não lhe dará
outra tão cedo, enquanto permanecer em sua memória o trauma da pancada que quase lhe
tirava a vida. Não adianta você sacudir livro após livro porque se recusará a
aparecer. Agarrar-se-á às páginas e, se cair ao chão, correrá rapidamente,
escondendo-se por trás do guarda-roupa.
8 Não se deixe levar pela vaidade. Às vezes você atinge uma barata de leve e ela
vira-se de barriga para o ar agitando as perninhas ininterruptamente, com a expressão de
quem está dando uma gargalhada, achando você engraçadíssimo. Isso poderá lisonjeá-lo
mas não a poupe por esse motivo.
9 Às vezes elas tentam outro truque sentimental. Atingidas de leve elas vão se
arrastando tristemente, de vez em quando olhando para você com um olhar que 1he dilacera
o coração, como quem diz: "Seu malvado, viu o que você fez?" Antes de
começar a chorar bata até matar. Depois chore.
10 De seis em seis meses faça um teste consigo próprio para ver se você está
mais desbaratador do que no semestre anterior. Se a resposta for negativa não esmoreça.
Continue lutando até que possa, como nós, cobrar caro pelas lições administradas. E
essa é nossa última recomendação: cobre sempre caro pelos seus conselhos nesse setor.
Não se barateie!
Millôr Fernandes, ao que parece, padece do mesmo horror a baratas que muitos de
nós têm.
Texto extraído do livro "Lições de Um Ignorante", José Álvaro Editor, Rio
de Janeiro, 1967, pág. 113.
Tudo sobre Millôr Fernandes e
sua obra em "Biografias".
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