Barbaridade
Mariana Mesquita
Bárbara é uma doce menina de 13 anos, saudável e feliz. Acorda todos os dias,
bem-disposta, às sete da manhã. Cantarola, abre as janelas, respira fundo, sorri e
exclama que a vida é bela e que ela é a garota mais feliz do mundo! Deseja bomdia às
suas bonecas, toma um refrescante banho, penteia seu lindo e sedoso cabelo, veste uma
roupa esvoaçante e desce as escadas como uma borboleta sobrevoando um jardim. Antes que a
mãe a chame para o café, Bárbara grita: Já estou indo, minha linda mamãe!
O pai lhe dá um beijo na testa e diz que a filha está um bibelô! Bárbara acha graça e
lhe devolve o carinhoso beijo. Ela é o orgulho dos pais. A mãe traz a margarina e a
família toma seu desjejum feliz.
Depois do café, o pai de Bárbara diz que tem uma surpresa. A mãe lhe entrega uma caixa
colorida, com um laço de fita cor-de-rosa. A cor predileta de Bárbara. Ansiosa, ela
desembrulha o presente tentando adivinhar o que será. Quase chora de emoção. Seu sonho
mais recente foi realizado: é uma linda boneca Barbie vestida de noiva. Bárbara imagina
como será o dia de seu casamento e, emocionada, comenta, mais uma vez, que ama muito seus
pais. Depois, guarda a boneca junto com as suas outras trinta e cinco Barbies. As
esportivas, as executivas, as vestidas para o campo e para o baile. Todas lindas e
perfeitas! Mas nenhuma com a graciosidade de Bárbara. Quem sabe um dia não existirá
uma Barbie Bárbara?, pensou, sorriu e foi se arrumar para não se atrasar para a
aula.
Oito e meia é a hora do ônibus. Bárbara sai de casa saltitante. O motorista que a leva
todos os dias pensa: Que graça de menina! Bárbara tem a pele lisa como uma
pétala de rosa, os dentes mais brancos que a neve e os cabelos macios, sedosos e com
balanço. No colégio, suas notas são as melhores, seus assuntos, os mais interessantes,
e todos querem sua amizade. Ela comanda as brincadeiras no recreio. Os professores se
orgulham da aluna, e os amigos a amam. Bárbara não faz esforço para agradar, mas é a
mais querida do colégio. No recreio, observa os meninos e prevê o dia em que terá que
optar entre se casar com Rodrigo Martins ou Eduardo Carvalho. Uma decisão difícil, mas
que ainda tem tempo para ser tomada. Certeza, só uma: quer ser mãe de uma linda menina.
Como ela. Bárbara suspira, volta para casa, faz seu dever e corre para brincar com sua
nova Barbie. A noiva. Sorri. Como sou feliz!
Era assim, foi sempre assim até aquela madrugada maldita. Bárbara dormia ingenuamente.
Sonhava com anjos e brinquedos que ganhavam vida. Mas, sem aviso prévio, seu sonho foi
interrompido por imagens estranhas, sem nexo, que lhe davam arrepios e tremedeiras. Os
anjos fugiram, os brinquedos desapareceram. Ela fazia força para voltar ao sono antigo,
mas nada adiantava. Bárbara se debatia, tremia como se seu corpo estivesse sendo
invadido, abduzido, carcomido... 8uava. Tentou, em vão, acordar. Por instinto, tentava
negar o que estava fadado a acontecer. Mas era tarde... A natureza havia marcado a data.
Às três horas e cinco minutos do dia 15 de abril de 2009... Mais uma adorável e
indefesa criança se tornava adolescente!
No dia seguinte, sem lembrar de nada, Bárbara acordou tarde e perdeu a hora do ônibus.
Estava molhada de suor, exausta, e não sabia por quê. Eram muitas as novidades. Reparou
que seu peito apresentava duas protuberantes bolinhas, de tamanhos diferentes, que
despontavam para o alto. Precisava com urgência de um sutiã que escondesse aquelas
azeitonas. Seus pés saíram na frente, haviam crescido mais que o resto do corpo. Seu
esqueleto, agora, era quase um poste alto e envergado. 0 cabelo já não balançava
como antes, e ela reparou que seus dentes da frente estavam trepados uns por cima dos
outros. Não era justo, mas provavelmente teria que usar aparelho fixo por muitos anos.
Sentiu ódio!
Sua casa também parecia ter mudado, estava bem menor. Mas logo percebeu que era ela que
não cabia mais no quarto. Havia crescido. Esbarrando em móveis, foi tomar seu banho.
Não! isso não!! Bárbara se olhou no espelho e gritou horrorizada. A acne marcava
todo o seu rosto Na ponta do nariz crescia uma volumosa espinha cercada de pequenos
e negros cravos. Bárbara quis morrer! Gritava que era a menina mais infeliz do mundo, que
ninguém a compreendia, que seus pais eram os culpados por tudo, que nunca mais sairia de
casa! Que estava horrorosa! Que odiava sua vida, seus brinquedos, a escola e sua família
por ter permitido que essa desgraça acontecesse! A mãe veio, aflita, perguntar que
estava acontecendo. 0 pai chegou a pensar em chamar a ambulância, os bombeiros ou a
polícia. Mas Bárbara bateu a porta do quarto, furiosa. Já ia se jogar na cama para se
afogar em lágrimas quando viu as trinta e seis Barbies sorrindo e zombando do seu
infortúnio... Sem parar para pensar e chutou a Barbie executiva! Que alívio! Sentiu
tanto prazer em destruir aquela boneca ridícula que arrancou a cabeça da esportiva e
devorou a perna da Barbie noiva! Ninguém me compreende! Oh dia! Oh céus! Oh vida!
O tempo passou, o mato cresceu ao redor e agora ela tinha pentelhos em lugares nunca antes
imagináveis. Não demorou muito e a menstruação chegou, para enfatizar a
transformação de menina em monstro. Seu corpo inteiro doía, movido e exaurido. Milhares
de hormônios borbulhavam em seu corpo, provocando novas e estranhas sensações. Foram
três dias de um fluxo intenso. Sentia cólica, tesão, alívio, ódio, calafrio, amor, e
chorava, chorava...
Os pais de Bárbara tentaram de tudo. Psicologia, psicanálise, medicina, pedagogia,
psico-pedagogia, terapia familiar, individual, ocupacional, homeopatia, fitoterapia,
astrologia, filosofia, espiritismo, ciências alternativas, ocultas e nada! Fizeram
reuniões com o colégio, com os vizinhos, com pais dos amigos... Foram compreensivos,
repressivos, alternativos e autoritários. Mas não era fácil domara fera. Nada acalmava
Bárbara.
Ela agora fazia o que bem queria, na hora em que bem quisesse. Essa era a parte boa.
Matava aula, fumava escondido, e, para provar que era a tal, deu para Rodrigo Martins numa
noite e para Eduardo Carvalho na outra. Achou tudo um saco!
Cada vez que olhava sua coleção de Barbies, já meio destruídas, tinha mais ódio
delas, de si mesma e do mundo. Eu odeio Barbie!
Que ninguém viesse dizer que Bárbara não tinha motivos para se rebelar. A culpa de sua
revolta foi aquela noite fatídica quando houve a transformação da criança em fera.
Pelo menos, esta certeza ela tinha: a vítima era, e sempre seria, ELA.
No café da manhã em família do dia 13 de agosto, Bárbara havia acordado de mau humor.
O pai, exausto, caiu na asneira de chamá-la de rebelde sem causa. A mãe, tolinha,
comentou que a nova personalidade da filha fazia com que ela se lembrasse de Gonga, a
mulher gorila. Bárbara quis matá-los! Calma, Gonga! Mas será que eles não
percebem que são os culpados por tudo? Ela já não suportava mais aquela conversa
mole: Um dia você vai nos compreender! Nós te amamos muito, meu bibelô! Essa
fase difícil vai passar! ... Chega! Correu para o quarto, bateu a porta e foi
devorar uma nova Barbie, quando se deu conta de que não havia sobrado mais nenhuma para
abrandar sua ira. Calma, Gonga! Mais raivosa do que nunca, desceu as escadas como
um caveirão. E, quando os pais tentaram impedir que ela demolisse a casa, Bárbara
virou uma mulher-bomba e explodiu. Estraçalhou o casal como se eles fossem bonecos
Barbie e Ken , agora sem pernas nem cabeças. Devorou os dois! Comeu o pai,
depois a mãe... Não sobrou nem um órgão, nem um membro, nem um pedaço do corpo humano
para contar a história. Ufa! Estavam todos em frangalhos. Inclusive Bárbara. Ela
saiu ferida e os pais despedaçados.
Finalmente, suspirou mais calma, olhou o cenário de devastação, sorriu e pensou: Ah,
não fode.
Mariana Mesquita por Claudia
Jouvin: "Ela já dirigiu peça, escreveu
para a TV, pro teatro, trabalhou como atriz, dirigiu a Intrépida Trupe e ainda participou
de shows da Blitz. Se fosse um personagem de ficção, ninguém acreditava. Mas ela é
real, minha gente. A moça é um luxo! E eu quero ser que nem a Mariana quando
crescer!" O texto divulgado foi extraído do livro "Dez contos de terror",
Editora Mirabolante - 2009, Rio de Janeiro, pág. 111, organizado por Márcio Trigo de
Loureiro.
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