Vingança
Sandra Falcone
JANEIRO
O diagnóstico tinha sido cruel. No primeiro momento pensou na perda dos cabelos, com a
possibilidade do tratamento quimioterápico, não tinha como não dizer, eles delatariam.
Depois do primeiro choque, a inconformação. Foram longas as noites de tortura. Não
diria nada a ninguém, sofrimento inútil. O seu era suficiente. Vamos operar já, disse o
médico muito sério. Quanto mais rápido melhor. Resolveu esperar, viver aqueles meses de
felicidade que lhe restara. Viveu, como pode. Olhava aquele ser a seu lado e pensava: não
tenho o direito de dizer, não agora. Não falou.
MAIO
A desconsideração, o desleixo com a sua presença, vontade louca de gritar na despedida,
mas ficou calado. Ela não merecia. Não entendia a atitude , a instabilidade. O amor
definhava? A esperança entrando e saindo das suas noites. Até que foi embora de vez, num
lamento com a desesperança o desespero, com o desespero a decepção e, com a decepção
a rispidez e, com a rispidez o adeus. Longas noites, raiva. Até que, finalmente, um novo
dia nasceu... Num outro bom dia, que não era o dela. Era feliz? Talvez, precisava
dizer-se assim. Reviver em outra os mesmos momentos? Talvez!
OUTUBRO
O acaso do encontro, as mãos entrelaçadas com a outra, o mesmo olhar que um dia fora seu
e, o mesmo beijo, o mesmo amor! Tudo o que era seu, ali, diante de seus olhos, roubado.
Apenas alguns meses e tudo esquecido, uma vida inteira de amor. E o olhar dele enfrentando
o seu dizia calado: consigo viver sem você, sabia? Tudo tão pequeno, diante dos fatos.
Errara em não dizer a verdade, em poupá-lo? Não tinha mais tempo para repensar, sabia
disso, e nem mais tinha vontade. No entanto, no entanto... Na boca o gosto amargo do
inócuo, do sem sentido.
Mais um domingo dizendo bom dia lá fora, o sol sorrindo pela janela e seus cabelos
caindo. Lembrou-se de uma máxima: a vingança deve ser comida fria, aos poucos, sem
pressa. Ela tinha fome, muita fome. Sorriu com a boca oca de alegria. Com que prazer tinha
dito ao médico: Não vou operar mais, que se cumpra o meu destino, sem a interferência
de ninguém. A sua vingança começara, naquele telefonema, a ser cozida, em fogo brando.
Que viesse a doença na sua plenitude. Dia após dia, que tomasse conta do seu corpo, até
o momento final. Cada gemido seu, um pedaço dessa vingança degustado, com prazer,
volúpia, lentamente. Ele saberia, a cada minuto. Negava-lhe o conforto da cura. A cada
sorriso dele, a cada momento de felicidade, corresponderia um pedaço do seu corpo tomado
pela doença, como ele fizera com a sua alma.
DEZEMBRO
De repente aquele envelope estranho, no meio da correspondência. Abriu, dentro um outro
envelope endereçado a sua pessoa no endereço antigo. Estranho pensou, quem teria
enviado? Abriu e leu, estarrecido: no cumprimento do nosso dever de oficio dirigimos-nos
pessoalmente como marido da sra. considerando que o câncer detectado em janeiro. Tentamos
por diversas vezes contatar V. Sas, mas lamentavelmente não conseguimos. No sentido de
evitar futuros transtornos estamos dando ciência ao Conselho de Medicina de que o nosso
diagnostico foi feito e da recusa das providencias cabíveis, tanto pela paciente como
pelo seu cônjuge. (ass.) Clinica de Diagnóstico.
Permaneceu em pé, quieto, durante horas. Depois, foi até o espelho, olhou-se
demoradamente, encostando o rosto na superfície plana e fria e chorou.
...
Não muito longe dali uma mulher magra de rosto triste, emoldurado por ralos cabelos
estremeceu, levemente. Encostou os lábios numa outra superfície plana e fria e
beijou-se. O beijo do Judas.
Sandra Falcone, advogada por profissão e escritora por
opção, é uma observadora voraz da sua janela na Avenida Paulista, em São Paulo
(SP). Tem diversos livros de poemas publicados e colabora com jornais da capital paulista,
além de participar de vários sites no Brasil e em Portugal. Provando ser uma artista
multimídia, selecionou poemas que compuseram os CDs "Notícias de mim",
com versos declamados por Miguel Falabella e Elisa Lucinda; e "Retratos de
Mulher", com a participação de Alessandra Sino, Gláucia Libertini e Ivan Parente.
É a autora da peça "Até que o virtual nos ampare", encenada no Teatro Centro
da Terra por Nico Puig e elenco, em junho de 2006.
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