O homem que grita demais
Vivian
Heringer Pizzinga
Um dia vamos todos morrer! — gritou
aquele senhor, barba por fazer, camisa por lavar, calça por passar,
contas por pagar, refeições por digerir, anos por viver, filhos por
rever, sonos por dormir, histórias por ouvir. Ele estava no meio da
praça, eram pouco mais de onze horas da manhã e o movimento não era
ralo naquela quarta-feira, âmago inequívoco da semana. Ali ele
estava e berrava, sólido.
— Que papo brabo! — vociferou o office-boy que ali passava,
apressando o passo por julgar louco aquele homem de olheiras
profundas e voz rouca que lembrava aquilo que não precisava ser
lembrado. Não àquela altura do dia. Menos ainda em uma semana sem
feriados, em dia eqüidistante do último domingo e do próximo sábado!
Um dia vamos todos morrer! Morrer! E tudo vai acabar! Nenhum de nós
— ouçam bem! — nenhum de nós que agora anda, que agora vai e que
depois voltará, que agora pensa e cogita e rememora, nenhum de nós
sobreviverá ao dia de nossa morte! — e gritava ainda mais alto,
gesticulando como um geminiano bem faria. Ele não tinha signo, no
entanto. Mas nem todos podiam saber...
A professora de português que corria para não chegar atrasada na
terceira aula particular que dava naquela manhã avaliou que, apesar
dos trajes não tão limpos e do cabelo não tão penteado, aquele
esquisito homem a falar de morte tinha um bom português. O que
estaria fazendo ali, gritando daquele jeito, aquele homem que,
certamente, passara por bons professores, talvez há vinte, trinta
anos?
Um dia vamos morrer e de que adiantará tudo isso agora? Será o fim!
Será o fim, e nada disso servirá depois! Nada disso do que vocês
carregam — nas mentes e nas bolsas e até mesmo nas mãos —
absolutamente nada, eu digo e repito, servirá quando estivermos
morrendo! — e agora a saliva que saltava veloz de seus lábios podia
atingir alguém que se aventurasse a ter com ele em um contato mais
próximo. Era uma saliva espumosa e pontual e a rouquidão já ameaçava
seu discurso impetuoso e solitário.
Uma senhora, muito idosa, que voltava contente de sua
hidroginástica, entristeceu-se ao ver aquele homem que gritava para
ninguém mais ouvir. Pensou em contradizê-lo, iniciar uma
argumentação qualquer: — Nem nas mentes o que carregamos há de
servir quando a morte a nós nos vier buscar?, mas desistiu e seguiu
adiante, tinha de buscar seu netinho na escola e não era bom
deixá-lo pensar que todos o haviam abandonado.
Um dia morrerei! E cada um de vocês! — e, dito isso, aquele velho
homem de muitas coisas por fazer e aspecto trôpego e incompleto,
tropeçou, cambaleou, rodopiou, tossiu, engasgou-se, vomitou,
ajoelhou-se, inclinou-se, novamente se levantou, mais uma vez
tropeçou, deu de cara com o chão de asfalto da praça, alguns se
aproximaram assustados com o tombo inesperado, e então ele se virou
de lado, piscou os olhos, tentou levantar, foi segurado, amordaçado,
entorpecido e levado para bem longe de qualquer ouvido acordado. Não
se sabe quando morreu, se ainda vive ou se jamais existiu, e nem
mesmo se tinha razão.
Vivian Heringer
Pizzinga é carioca, nascida em 1979 e formada em Psicologia
pela UFRJ, tendo feito especialização e, recentemente, terminado o
Mestrado em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ. Escreve desde os nove anos,
quando fez suas primeiras histórias, datilografadas por sua mãe, que
deixava espaço para que ela as ilustrasse, e, desde então sempre
escreveu. Desde final de 2007, no entanto, vem buscando divulgar mais
seus textos e dedicar cada vez mais tempo ao exercício da escrita e ao
exercício de se mostrar como alguém que escreve. Em janeiro 2008 ano,
fez uma pequena publicação em formato de zine, com quatro textos, que
deixa em espaços culturais ou distribui para amigos e de mão em mão.
Nunca publicou nenhum livro.
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